um filme documentário brasileiro chamado o riso dos outros, foi feito sob medida para ser visto, revisto e pensado neste momento pós-atentado ao charlie hebdo. ideologias se desfazem em tons de cinza, ou se enfraquecem, e debates tensos dividem opiniões inflamadas - às vezes até surpreendentes - discutindo o direito da liberdade de expressão humorística irrestrita e absoluta de um lado, e, do outro, o dever de respeitar limites – mas quais? - para fazer humor, caricaturar, ironizar, desconstruir e, no nível mais pesado, insultar o outro: o ‘diferente’.
o filme do humorista arantes, parece premonitório dos debates que viriam depois e estão aí agora, nas ruas encharcadas de medo, protestos e passeatas dos cidadãos e nos discursos cínicos de dirigentes de governos. aqui, por motivos diversos daqueles europeus; mas medo é medo - de terroristas, assaltantes, estupradores, assassinos. e há também os terroristas de estado sobre os quais pouco, na mídia daqui, se fala.
produzido pela tv câmara, o riso dos outros fez enorme sucesso nas redes sociais, na época em que foi lançado. ele traz entrevistas com comediantes, humoristas, quadrinistas, acadêmicos, um deputado e escritores. o seu recorte é a comédia stand up, a que vem atraindo muitos da jovem nova geração de humoristas, nos rastros do trabalho inicial de woody allen.
o doc foi o vencedor de licitação da tv câmara para produção de trabalhos sobre ética. e acabou sendo um trabalho que reacende o debate sobre os limites do humor. como tema central, a profissão do humorista e, dentro dela, o que seria o politicamente correto. os temas que se seguem, no filme, são consequência, mas nem por isto menos importantes. é o olhar do humorista dirigido à tragédia. o diálogo do humor com os preconceitos. e talvez o que mais provoca: “há sempre uma dose de crueldade no humor” como diz o cartunista laerte, dos mais brilhantes humoristas brasileiros, teórico e analista do seu ofício.
“existem maneiras de fazer humor sem humilhar os outros,” diz um. e outro: “o humor sempre namorou com a truculência e com a violência.”
em nome do humor toda piada será válida?
“chamar um negro de macaco não é e nem nunca foi engraçado”, replica um entrevistado.
na época, pedro arantes declarou, em entrevista, que tinha consciência de que estava mexendo em um vespeiro ao levantar esta questão: até onde vai a liberdade – ou o direito - de expressão através do humor? no filme, ele conversa com a blogueira feminista lola aronovich e rafinha bastos. com laerte, andré dahmer e arnaldo branco, o comediante danilo gentilli, deputado jean wyllis, escritor antonio prata, com fernando caruso, ben ladmer, nancy people, marília meirelles, hugo possolo, e vários outros.
“eu acho,” disse ele, nessa entrevista de 2012: “que não existe tema proibido no humor. agora, você tem que se cercar de cuidados para poder trabalhar com determinados assuntos.” a observação pode ser estendida e ampliada, do nível intelectual para o da segurança física, no caso do charlie hebdo, atingido pela tragédia e pela violência talvez evitadas caso medidas de proteção mais rígidas tivessem sido adotadas para proteger e monitorar uma equipe de humoristas que trabalhavam com personagens de assunto altamente explosivo – os islamitas.
"o que eu acho é que tem setores da sociedade que são mais organizados que outros,” observa arantes. “então, parece que fazer piada de anão é menos ofensivo do que fazer piada com negros. mas a verdade é que os negros são um grupo muito melhor organizado historicamente do que o grupo dos anões. é só isso.”
além do fato de os primeiros contarem com recursos legais mais à mão para exigir retratação e punição, na justiça, do que os outros.
“em determinado momento, tal grupo histórico pode estar mais ou menos organizado, o que muda o quanto você pode falar dele. por exemplo: hoje em dia, fazer piada de judeu é muito complicado. mas 50 anos atrás era banal fazer piada com judeus, por mais pesada que fosse a piada. então, se construiu uma questão que impediu as pessoas de fazer esse tipo de piada. mas é tudo uma construção e só depende do tempo.”
no mar de ofendidos, de intolerantes, de muita raiva e ódio, como agora, “sempre vai haver alguém ofendido quando se faz uma piada. a questão é como a gente negocia essa ofensa historicamente," diz laerte.
sempre haverá ofendidos nas multidões de crentes porque, afinal, temos todos, religiosos ou não; iconoclastas, blasfemos, céticos, progressistas, ateus, reacionários e conservadores, cínicos ou indiferentes, temos todos uma fé.
duas observações de arantes permanecem, a propósito de o riso dos outros, um filme que não deve deixar de ser visto. primeira: “ninguém deve ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa.” segunda: “às vezes você vai rir de alguma coisa e depois vai pensar que não deveria ter feito isso. não é para ninguém ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa. não precisa se culpar; basta refletir.”